27 Novembro 2018
"Vivemos envolvidos por Deus. Vivemos no lado de Deus. Vivemos nas mãos de Deus. Deus tem em suas mãos toda a criação: terra. Deus é Mãe. Em muitas culturas indígenas a mãe é aquela que serve a cada um de seus filhos e filhas. O pouco que se tem ela ajuda a partilhar. Aquilo que somos e temos são obras de Deus", escreve Justino Sarmento Rezende, que é do povo Ʉhtãpinopona-Tuyuka, nascido na aldeia Onça-Igarapé, distrito de Pari-Cachoeira, município de São Gabriel da Cachoeira – AM. É salesian e padre. Possui Licenciatura em Filosofia (UCB), Bacharelado em Teologia (FTNSA), Mestrado em Educação (UCDB), Doutorando em Antropologia Social – UFAM, membro do Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena e membro do Colegiado Indígena – UFAM.
Sendo um indígena do povo ɄHTÃPINOPONA, que significa filhos-da-cobra-de-pedra. ɄHTÃPINO, Cobra-de-Pedra é o ser divino que cria o ser humano Tuyuka. Este povo é também conhecido como povo Tuyuka.
A partilha que faço nesse momento brota da minha vida pessoal Tuyuka e dos convívios construídos com outros povos indígenas: Tukano, Barasana, Desana, Mirititapuia, Hupda, Carapanã, Arapaso, Siriano, Kubeu, Piratapuia, Tariano, Tatuyo e, a partir desse ano (2010) com o povo Yanomami do rio Marauiá.
Eu sou indígena padre, por isso, as minhas reflexões seguem a dinâmica da construção de teologias e espiritualidades indígenas. A partir disso, busco a aproximação com as teologias e espiritualidades cristãs que possuem suas próprias sistematizações.
Eu procuro manejar os saberes tuyuka e dos demais povos indígenas para olhar, entender e interpretar o mundo; esses saberes são aprendidos na convivência; sem dúvida também estão presentes os conceitos filosóficos, teológicos e antropológicos (mestrado/doutorado).
A percepção dos processos de produção das identidades e diferenças é um dos elementos importantes quando queremos tratar Cosmovisão Indígena. Na experiência eu vejo a importância de olhar com mais atenção às diversidades culturais e estabelecer instrumentos de interação (interculturalidade) com os outros povos e suas culturas. A constatação que hoje eu faço no campo religioso e nos espaços educativos é de que eles são espaços ressignificados e permitem refletir e recriar as identidades e diferenças; são espaços de negociação de valores e de práticas culturais de outros povos; são espaços que favorecem a construção de novas relações humanas, produção de novos conhecimentos e acesso a outros recursos materiais e imateriais. São os terceiros espaços, onde não vale muito dizer eu ou você, mas, sim dizer eu e você, meus conhecimentos e seus conhecimentos, minha experiência religiosa e sua experiência são importantes para contribuírem para uma vida melhor.
Para os povos indígenas acima citados esses temas estão entrelaçados e entranhados em suas vidas, histórias e com todo o seu entorno humano e não humano, as realidades materiais e imateriais. Cada povo possui nomes mitológicos, também dizemos sagrados, e, neles estão contidos conteúdos, histórias e projetos de construção de vida.
As nossas existências estão enraizadas nos Lugares/Casas das origens/emergência: Casas de surgimentos, Casas de transformação. A cosmovisão do mundo e dos seres vivos é feita numa perspectiva vertical (alto e baixo) e horizontal. Existe um patamar acima de nós e outro abaixo de nós, nas profundidades das terras. Outros, no nosso patamar, nas florestas, nos animais, águas, lagos, nos peixes e outros seres vivos. Dentro desses espaços os nossos sábios Kumua, Bayaroa, Yaiwa realizam os rituais de xamanização em busca de forças vitais para colocar dentro do coração humano.
A vida humana e outras vidas do mundo, da natureza, das águas, dos peixes, das árvores, dos insetos e de tantos seres vivos existentes possuem suas forças vitais. Eles se protegem e se defendem. O ser humano busca criar harmonia com todas essas vidas para viver com tranquilidade e equilíbrio. Quem consegue fazer esses acordos espirituais são os nossos Kumua, Bayaroa e Yawa. Eles são especializados para acessaram noutros mundos imateriais (espirituais) e conversar com outros seres para se entenderem (concordarem) para que estabeleça o respeito entre os diversos seres viventes. Na linguagem tuyuka dizemos as prevenções das enfermidades e proteção da vida humana; apaziguamento das forças prejudiciais de outros seres vivos com relação à vida humana e vice-versa. Se apesar desses cuidados/acordos as enfermidades atingem as pessoas os nossos Kumua, Yaiwa, Bayaroa ritualizam (cantos, danças...) para enfraquecer os seres que querem prejudicar a vida humana.
Para nós Tuyuka, os nossos anciãos são pessoas conhecedoras do mundo, da vida, do além-vida, etc. São apaziguadores, pessoas de equilíbrio, pessoas que xamanizam para defender a vida. O ancião-sábio-benzedor é cuidador/defensor da vida, curador, mestre da vida.
Os Tuyuka acreditam nas forças vitais que vêm das divindades. Com a mesma proporção cremos nas forças destrutivas dos seres superiores a nós humanos, de seres “outros”, diferentes de nós. Acreditamos nas forças protetoras e curativas de pessoas humanas e tememos também sermos destruídos com seus venenos espirituais e materiais. Essas crenças nos ajudam a viver de forma esperta, sabendo aproveitar das oportunidades de sermos xamanizados, kumuanizados, protegidos e curados; evitar a aproximação das pessoas e realidades que podem nos fazer mal.
Os nossos antepassados com sua sabedoria e prudência possuem cuidados especiais para as pessoas de suas aldeias. Antes à participação de rituais e cerimônias preparavam-se bem, realizavam rituais de abluções de água (vomitar água) para a purificação do corpo humano e seguem as dietas alimentares, segundo as orientações dos sábios. Assim adquirem o sentido da vida individual, comum no dia a dia e na vida ritual, cerimonial. Na atualidade as pessoas querem praticar os rituais de danças e cantos descuidando dos rituais de preparação e disciplinas pós-cerimoniais.
As forças protetoras e curativas de nossas vidas só nos atingem através de símbolos bem visíveis, palpáveis, degustáveis... São símbolos sagrados que os nossos antepassados escolheram inspirados e iluminados pelas divindades. Ainda, hoje a escolha do material que passará por processo de xamanização é escolhido/sugerido pelo próprio Kumu. Os Kumua, Yaiwa e Bayaroa são pessoas preparadas para se sentirem abertas às inspirações dos seres divinos.
Cada povo indígena possui sua própria forma de relacionar-se com o Deus da vida e expressa-a de diversas formas. O Deus da vida é conhecido com diversos nomes e imagens. Cada povo explica/ensinam aos seus filhos e netos diversas formas de relacionar-se com Deus, com explicações e práticas próprias. Cada povo segue a lógica própria para ensinar/aprender/viver sua relação com o Deus. Cada povo tem sua própria experiência, história e vivência religiosa de estar envolvido pelas mãos de Deus e de estar na presença divina; sente-se guiado por Deus na sua história (salvação, libertação dos fatos de dominação, luta contra o poder do mal).
Os Tuyuka e outros os povos indígenas entendem que Deus está presente na criação, pois ela é a manifestação da ação de Deus. Cada povo indígena vive sua própria relação com Deus, com a experiência de vida própria e única. A natureza é a nossa casa, a própria casa de Deus. Ele cuida da pessoa e a pessoa ajuda a cuidar da criação. Cada povo cria e recria, constrói e reconstrói seus próprios conteúdos que estão presentes nos mitos, lendas, histórias, ritos, etc. Neles se encontra a história sagrada de cada povo. É a vivência do coração, pois permite dizer: isto está bem porque o coração me falou; as decisões importantes se falam com o coração.
Na lógica indígena o coração é centro da vida. As festas são expressões simbólicas e a leitura dos acontecimentos, percepção da ação de criadores que favorecem o relacionamento com os antepassados e conversando com os parentes que já morreram. O espírito dos antepassados está sempre presente na vida do povo. A escuta aos sábios e às sábias contribui para aprendizagem dos valores fundamentais da vida. Todo acontecimento da vida é motivo da celebração. A mulher é a que guarda e dá sentido à vida. Ela é a referência teológica. É muito importante para um indígena que vive muito tempo fora do seu ambiente de origem retornar para a sua casa e reconhecer-se dentro dele. Readquirir o modo de viver de seu povo, observando as experiências de respostas espontâneas a muitas interrogações da vida. Falar de amor é uma linguagem de irmãos. É importante saber que a cultura está sempre em movimento, por isso, há necessidade de lembrar que a verdade de Deus está uma parte nas instituições religiosas e outra parte na cultura de cada povo.
Vivemos envolvidos por Deus. Vivemos no lado de Deus. Vivemos nas mãos de Deus. Deus tem em suas mãos toda a criação: terra. Deus é Mãe. Em muitas culturas indígenas a mãe é aquela que serve a cada um de seus filhos e filhas. O pouco que se tem ela ajuda a partilhar. Aquilo que somos e temos são obras de Deus. Não existe separação entre o Profano (os trabalhos diários) e o Sagrado (acontecimentos especiais: festas, rituais, cerimônias...). Existem sim momentos especiais para conversar com Deus. Todos os espaços são de Deus. Alguns elementos importantes são: a) Viver bem e estar bem significa viver no equilíbrio e na harmonia de vida; b) sabedoria significa saber oferecer e oferecer continuamente. Quando falta isso surge desequilíbrio e desarmonia. Todos os espaços e tempos são sagrados, porém existem Espaços/Tempos mais sagrados que servem para restaurar o equilíbrio e a harmonia (ritos = diálogos); c) diálogo contínuo com os seres protetores: diálogo antes de um trabalho, da pesca, da caça, das festas, viagens etc.; pedido de proteção é diário; os Seres protetores não são deuses, mas são espíritos. Alguns habitam nas montanhas mais altas, são espíritos dos antepassados, por isso, antes de qualquer trabalho se deve pedir perdão e licença aos espíritos protetores. Outros espíritos-sábios são como nossas mães que estão continuamente nos protegendo e sem essa proteção pode acontecer desastres. Outros espíritos intercedem para nós o bem. Outros espíritos habitam os lugares onde frequentamos e eles nos cuidam. Os animais também possuem seus protetores, são protetores da fertilidade, da fecundidade. Outros espíritos existem dentro de nós. Outros espíritos são protetores de casas, de animais, de bosques, das águas, dos peixes e de diversos lugares. Existem espíritos protetores do nosso caminho para o trabalho e protege o trabalho para que funcione bem. Cada matéria, cada ser tem o seu protetor. Esses protetores podem fazer o bem e também fazer o mal (justiça). Na vida diária nós usamos uma maneira de relacionarmos com Deus, através dos rituais de xamanização (defumação) da água para beber e tomar banho para prevenir as doenças.
O processo de sermos/fazermos gente passa pela forma circular: somos criados [gestados], nascemos e iniciamos [iniciação], casamos [para ter/ser gente tem que ter muitos filhos; homem e mulher se tornam mais gente ainda], prestação de serviços [temporários e permanentes à comunidade] e conselho: ser conselheiro é ser uma pessoa madura, é saber como é a vida; quando alguém quer ser importante não deve decidir sozinho, mas deve consultar ao homem e a mulher; não é uma caminhada solitária, mas conjunta; é o momento da plenitude de ser gente.
A Mitologia é Projeto de vida. É uma história que fala sobre o que deve ser e o que não deve ser na nossa vida. Os Mitos alimentam a vida indígena, narram sobre a vida, do cuidado que devemos ter pela vida; somos educados na comunidade, vivemos na família, temos autoridades temporárias e permanentes; vivemos na solidariedade.
A simbologia é a expressão do sentido da vida, do projeto de vida. Natureza é vida: os nossos sábios interpretam a natureza e sabem quando ela se apresenta como tempo favorável à vida; é outra pessoa dialogante; ela sabe o que as pessoas precisam; nos fala de Deus; em cada parte da natureza está presente Deus. Terra é totalidade da vida: é a parte mais importante da natureza; ela nos fala sobre o cuidado que devemos ter com a vida; as pessoas vivem da Terra: trabalho, fruto, rio e terra. A terra é sagrada. Pela terra Deus nos dá a VIDA.
Nossa história é marca (sinal) de cada povo na natureza e indica cada etapa de sua vida: o desenvolvimento dos povos indígenas, as invasões dos brancos (não indígenas); enfrentamentos (revoltas) onde aparece um líder/personagem principal que lidera o povo. Mais recentemente em países latino-americanos surgiram Movimentos Indígenas que realizam suas marchas, reivindicações, manifestações contra os poderosos e contra regimes totalitários. A busca da Liberdade forma a nossa Espiritualidade, busca a fonte da vida. Os territórios indígenas significam a vida do povo. Cada país, cada povo tem a sua história de fatos marcantes, positiva e negativamente. Esta realidade de alegria e tristeza, de luta, vitórias, derrotas que fazem as histórias de muitos povos e de suas espiritualidades.
Muitos povos indígenas acreditam que os mortos continuam vivendo nas comunidades. O meu avô Higino (falecido em 1983) dizia que os nossos parentes nos visitam todos os dias pela manhã na passagem da brisa; pela noite através do vento. Outros povos dizem que o falecido vive durante três anos com a comunidade e sua família. Outros povos logo no dia da morte da pessoa fazem xamanização para enviá-lo para casa dos mortos, Boriwi. Para outros povos a morte de uma pessoa é uma festa. No ano de 2010-2016 morei com o povo Yanomami e para eles a morte tornava-se um evento grande e requeria grande festa. Buscam as bananas colocam na casa ritual, os homens escolhidos vão à caça; convidam outros parentes de outras comunidades; enquanto esperam o amadurecimento da banana e a caça; realizam dança de noite; no penúltimo dia fazem danças como comunidade; no último dia preparam mingau de banana, pilam os ossos do falecido e misturam com mingau para o consumo da comunidade. A festa dos finados tem a finalidade de restaurar a vida em harmonia; depois da festa não se pode mais falar do falecido, pois ele não existe mais.
Partilhei com vocês algumas questões sob a ótica de um Tuyuka. Vocês são estudantes de Teologia. Espero que algum elemento lhe inspire a pensar sobre a sua vida e sua missão. Nos espaços acadêmicos lidamos com muitos conteúdos que, posteriormente serão confrontados com os saberes de outros povos, conhecimentos que não aprendemos em salas de aulas, na vida, em contato e convivendo com as pessoas, nas comunidades, nos trabalhos. Cada um de nós provém de diferentes culturas, crenças e espiritualidades.
A nossa vida e os nossos trabalhos estão localizados num lugar maravilhoso, desenhado pelo Criador do Mundo antes que surgíssemos como povos indígenas. Ele presenteou este lugar para todos os povos lugares para que construíssem suas histórias. Eu, por exemplo, nasci na região do rio Negro, o maior afluente do Amazonas, na fronteira do Brasil com a Colômbia e a Venezuela, habitada por vinte e três povos indígenas pertencentes a quatro famílias linguísticas: TUKANO, ARUAK, MAKU e YANOMAMI. Nesta rica diversidade linguístico-cultural, cada povo tem sua história, suas línguas, práticas culturais, saberes, conhecimentos, políticas, economias. Interagimos com outros povos através de parentesco e constituição de primos-cunhados, etc. Por vivermos numa região as nossas praticas culturais apresentam muitas semelhanças e diferenças, também.
A partir daquilo que eu apresentei, hoje em dia, tratamos de construir a evangelização inculturada, um tema que mexe com a nossa mentalidade/identidade indígena-cristã. É um desafio mais recente, pois antes não havia interesse de valorização das nossas culturas indígenas, mas proibiam e perseguiam as manifestações religiosas e culturais. Por isso, até hoje algumas pessoas ficam confusas, duvidosas diante da recente valorização das culturas por parte da Igreja. Foi a partir do Concilio Vaticano II que começaram a falar da inculturação do Evangelho, mas tem avançado pouco. Somente temos pequenas iniciativas em algumas comunidades cristãs.
Como vimos no início os povos indígenas já viviam os valores importantes que davam qualidades de vida aos diferentes povos. Nesse sentido que certa vez (2009) escrevemos um texto chamado “A Boa Nova das Culturas Indígenas acolhe a Boa Nova de Jesus”. Digo assim por entender antes à chegada dos missionários o próprio Criador já semeou muitas coisas boas nos corações de todos os povos indígenas. Com isso, não quero dizer que os povos indígenas não têm erros, têm sim, e precisamos continuamente estar atentos para evitar as práticas dos males.
Hoje sonhamos com a Igreja que saiba dialogar com as diversidades de povos, com suas espiritualidades; com os povos indígenas e suas espiritualidades; espiritualidades cristãs, outras tradições religiosas. Ser Igreja companheira na caminhada; amizade, respeito, admiração; saiba propor novos estilos de vida. Igreja que promova o rosto laical: lideranças que animam as comunidades, associações, capelas, celebrações da Palavra de suas histórias e de Deus. Igreja que fortaleça o rosto feminino: desde a geração de filhos, educação, evangelização, catequese, animação das comunidades... Igreja com os pés no chão, encarnada, inculturada, intercultural; olhar com o olhar de Deus os povos amazônicos. Igreja com o coração aberto, contemplativa e de gratuidade. Igreja que promova o protagonismo dos povos amazônicos, para que se tornem interlocutores principais. Igreja que exerça a humildade, bondade, misericórdia.
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Cosmovisão indígena: criação, encarnação e saída desse mundo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU